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Abuso sexual

Infelizmente esta semana veio a público mais um caso de abuso sexual intrafamiliar com contornos graves. Esta é uma das formas mais traumáticas de maus-tratos No caso concreto, independentemente dos contornos do abuso que desconhecemos, o sistema de justiça decidiu pela prisão preventiva dos progenitores (aparentemente indiscutível), o que introduz uma separação entre a criança e a família que deve ser levada em conta por quem tem a função de proteger a criança.

O que devemos manter presente é que, independentemente dos contornos do abuso sexual, permanece a necessidade de se trabalhar a dinâmica familiar.

Se negligenciarmos o trabalho de reorganização e de luto da dinâmica familiar não dando oportunidade à criança de pensar o que aconteceu, teremos somente uma criança parcialmente protegida. A criança fica protegida do abuso sexual mas permanece exposta a uma história que não compreende, normalmente regida por uma dinâmica de secretismo, dificilmente verbalizável. É esta história incompreensível para a criança que tem de ser alvo de intervenção por parte de equipas terapêuticas especializadas de forma a protegerem o desenvolvimento psico-emocional da criança.

O trabalho terapêutico que tem como objectivo ajudar a criança a dar sentido à experiência de abuso, na opinião de Tilman Fürniss, é mais eficaz se, por um lado, existir um envolvimento da família no plano terapêutico e, por outro, se a criança puder beneficiar de intervenção terapêutica de grupo. Possivelmente o leitor poderá interrogar-se sobre esta prática, nomeadamente se tiver bem presente a dimensão íntima deste tipo de abuso. Tilman Fürniss argumenta, e na nossa opinião com razão, que a dinâmica relacional do abuso sexual é caracterizada pela existência de uma dinâmica de secretismo que encerra em segredo a dinâmica relacional. Por esta razão as crianças com história de abuso sexual aprendem não só a não falar das relações, como aprendem a gerir as relações afectivas “à porta fechada”, sob um jogo que não é publicável. É este jogo “à porta fechada” que é importante ser desafiado no processo terapêutico com crianças abusadas para que elas aprendam a naturalidade do convívio relacional em espaços sociais.

A intervenção terapêutica um para um, por mais eficaz que seja, replica em certa medida o contexto de secretismo na medida em que coloca a relação da porta do consultório para dentro, criando um espaço de alguma forma secreto. Em contraposição, a intervenção terapêutica de grupo ganha uma riqueza especial por quebrar com a dinâmica dual da relação do secretismo, colocando a gestão dos conflitos sociais numa arena de grupo, na qual a criança poderá reaprender a viver num espaço social e a restaurar os sentimentos de pertença.

E a família? Trabalhar como uma família onde ocorreu uma história de abuso sexual não é fácil. Desde logo existe a um conjunto de questões emocionais que são internas aos técnicos que devem ser acauteladas de forma a não contaminarem negativamente a intervenção. Quem trabalha nesta área deve obrigatoriamente reflectir sobre o impacto que a temática tem no seu íntimo e sobre as formas defensivas que adopta quando confrontado com o abuso sexual. Só após um bom trabalho de auto-análise é que o técnico poderá ir para o terreno e iniciar um trabalho com a família.

O abuso sexual intrafamiliar implica sempre uma quebra dos papéis da família e da estrutura geracional. A criança é como que repescada ao seu mundo infantil, sendo colocada num cenário e numa interacção adulta provocando a excitação do adulto abusador e a concretização do abuso.

Neste sentido, o abuso é sempre contextual e relacional.

É esta relação e contexto que ao longo do tempo vão sendo interiorizados pela criança levando tragicamente a um conjunto de aprendizagens relacionais abusivas. São estas aprendizagens que necessitam de ser alvo de intervenção; caso contrário, existe uma grande probabilidade da criança mais cedo ou mais tarde voltar a construir relações sociais reguladas pelo mesmo modelo abusivo. Quem já trabalhou com crianças abusadas sabe que existe um grande número de crianças que na entrada da adolescência erotizam exageradamente as relações, não conseguindo casar amor com sexualidade.

Ainda sobre o trabalho com a família, é necessário realizar pelo menos uma leitura conjunta da história do abuso, separando-se a dimensão adulta de parentalidade da dimensão da sexualidade (orientada para o parceiro adulto). A criança tem que compreender a diferença entre relação cuidadora e relação sexual. Só compreendendo esta diferença é que a criança poderá mais tarde, quando for adulto, não replicar o modelo aprendido.

PVS