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Tempos da adopção

Já há algum tempo que não escrevo coisas estranhas neste blog. É verdade, o tempo faz-nos ficar mais politicamente correctos, o que não é mau. Quem já trabalhou comigo sabe que eu só tenho a ganhar se aprender a moderar as minhas caretas em reuniões difíceis. Disfarçar o desagrado é uma arte bem útil. Também é verdade que o tempo tem-me dado a sensatez de perder certezas e de passar a achar que o mundo é mesmo feito de cinzentos.

Nos últimos anos tenho-me apaixonado por trabalhar com as famílias mais corajosas do mundo. Não falo das famílias numerosas, essas conheço-as eu bem! (cá por casa vai tentado existir uma). Falo das famílias que “loucamente” adoptam,  que tornam seu o que num primeiro momento foi de outros. Tornar seu, implica um diálogo complexo entre o ter e o ser que é difícil de deslindar e que torna toda a adopção um processo complexo. Ter uma família ou ser parte de uma família é uma narrativa complexa que cada um de nós constrói ao longo da infância e da vida adulta. Gosto de pensar que ser de uma família é simultaneamente ser quem sou e em paralelo ter um conjunto de valores, ideias, princípios e expectativas comuns. Mas confesso que talvez esta minha ideia tenha pouco de real. Ser família talvez não obrigue a ter valores, ideias ou expectativas comuns; talvez obrigue simplesmente a ser. E o que é isso, de simplesmente ser? Fácil! É simples + ser. Os adolescentes gostam de traduzir: simples + ser = está-se! Vamos ficando, uma simples cronologia, na qual o ponteiro do relógio dá voltas e voltas; talvez este seja um enorme e fabuloso segredo. Na volta repetitiva do ponteiro, no estar por estar, no ficar por ficar, é possível que o ser nasça e se construa. Cada vez mais acredito que o tempo, esse ponteiro rotativo, é um instrumento poderosíssimo.

Não raras vezes se fala da importância do tempo de qualidade, nomeadamente no tempo de qualidade entre pais e filhos, contudo cada vez mais acredito que o segredo está no tempo de quantidade que nos escapa na correria de sermos gente neste mundo. Quem adopta  normalmente sabe o valor da quantidade. Sabe e compreende a diferença quantitativa entre ter “uma” e não ter “uma” família, ter “um” ou não ter "um" filho e talvez por essa razão saiba muito sobre ser uma família, e sobre ser pai ou ser mãe, na medida que descobre nos olhos dos seus filhos o que é ser filho ou filha no passar do tempo. As famílias adoptivas são belos exemplos de quantidade “excessiva” de amor no qual o novo tempo, vence não só o presente e se projeta no futuro, como é capaz de conquistar o sombreado do passado. É talvez aí, no sombreado do passado, que reside o segredo de construir uma família. Tornar família é, talvez, o tempo que por ser tempo, dá a segurança de reescrever o passado, reinventando-o, como quem conta e reconta uma história acrescentando ou diminuindo um conto ou um ponto.
Todos sabemos que contar histórias é isso mesmo, tempo, muito tempo, mais subjectividade que tece o improvável. E qual improvável dos improváveis. Contar histórias não é, na minha opinião, reconstruir a veracidade histórica, mas sim narrar romances que nos embalam. O segredo não está na precisão do relato, mas sim na forma fantástica e melódica que nos acalma e nos adormece. Os olhos fecham-se, com uma boa história. Na escuridão da noite, fica então o colorido do dia, as voltas do ponteiro que marcam o tempo, de não estar sozinho. No sonho que agora preenche a solidão, nasce na madrugada o sentimento de pertença a uma família.

No trabalho com crianças e jovens adoptados tenho aprendido que adopção nasce na madrugada, dos sonhos. Ao contrário do que muitos possam pensar, a adopção não nasce na manhã de segunda-feira, nem na tarde de sexta-feira. Por esta razão, teimo em não perceber o vício das equipas da segurança social em acreditarem na fórmula, manhã de segunda e tarde de sexta, como fórmula perfeita de construção de uma família. Ser família é tempo, ausência, noite, sonho e acordar. É estar e não estar, é ter e não ter, para por fim, ser ou não ser. Filosofias à parte… Construir família é dar tempo para que tudo possa acontecer e voltar a acontecer.

As famílias adoptivas com quem tenho trabalhado têm-me ensinado isso mesmo. Ser boa família é ver tudo ser questionado, é bater na parede. Sim bater na parede! Olhar em frente, e numa lógica heróica e “mágica”, de quem olha em frente seguir com a convicção de que não há impossíveis, nas voltas do ponteiro do relógio.

PVS